Junho de 2011 - Nº 21   ISSN 1982-7733  
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Relato de um desembriagado

Daniel Broggi Ciardullo

20 anos, 3ºano de Engenharia Química na Poli/USP

São Paulo - SP 

 

É uma tarde de sexta.

Não, é uma tarde de segunda. Mas poderia ser uma tarde de sexta. Poderia ser uma tarde de qualquer dia pra dizer a verdade. Poderia ser qualquer um dos malditos dias das malditas semanas dos malditos meses que se arrastam para ele.

Mas hoje fora um dia especial. O ápice da desgraça. O fundo do poço.

Eduardo repousa o copo de vodka no bar. O que estava fazendo ali? Por que parara no hotel para um drink? Sabia somente que se sentia um traste. O maior fracassado do mundo. Queria afogar as mágoas. Esquecer da vida por um instante que fosse.

Bebia em goladas grossas. A aguardente descia-lhe a garganta bruta e gélida. Não tardava a queimá-lo por dentro. O bar começa a esmorecer, o copo fica turvo. Tinha passado do ponto. Estava só, embriagado e melancólico.

O dia rebobinava agora em sua cabeça.

Acordo cedo para uma entrevista de emprego. Uma entre as cinco ao qual vou nessa semana. Ainda não arranjei nenhum estágio. O pior é que nem tenho certeza se quero trabalhar nessa fábrica pra onde fui hoje. Mas não posso me dar ao luxo de escolher. Dezessete anos de estudo e uma faculdade de engenharia renomada não significam nada para eles. Não quando eles percebem que você parece ter mais interesse em Hemingway, Pollock e Jim Jarmusch do que em fingir ser um estudante de engenharia “convencional”; aqueles que amam RPGs online, Senhor dos Anéis e calculadoras HPs. Eduardo nunca gostou de clichês, muito menos de ser um. Tinha asco das convenções e estereótipos aos quais as pessoas tanto se apegam. Queria o diferente, o novo, o inusitado. Queria a insanidade dos libertinos, a liberdade dos loucos, a audácia dos desvairados. Isso sim.

Não era uma máquina. Não era um batedor de cartão. Não queria ser mais um a seguir o mesmo script. Mas era exatamente isso em que estava se transformando. Em um “mais um”.

Mais um a receber notas medíocres. Mais um a ficar de recuperação. Mais um que não entendia nada, mas fingia que entendia. Mais um a sofrer com trabalhos e relatórios que roubam todo o seu tempo. Mais um a não ir a cinemas, teatros, museus. Mais um a trabalhar e trabalhar. Mais um descontente com a vida. Mais um a reclamar e reclamar. Mais um a lamentar a própria desgraça. Mais um a se sentir só. A atravessar cada rua, cada ponte e esquina pensando “como eu queria que isso acabasse!”. Mais um a pensar na morte. De repente as pontes se tornam trampolins, as facas pulseiras, a corda um colar.

 Mas é tudo desvarios! Melancolias que se debruçam pelos ombros de um Eduardo morto de cansaço. Depois da entrevista vem o relatório. Vem a revisão de prova. Vêm os pedidos por nota e a certeza que não poderá usufruir de sua única semana de férias no ano. Vem a tarde. Vem o crepúsculo. Mas Eduardo não sabe do crepúsculo, tem de terminar o relatório do dia.

Encontra consolo em seu carro, junto aos CDs de jazz e as luzes incandescentes que iluminam as ruas e evocam um passado que ele não viveu, mas sente dentro de si. Humphrey Bogart deve estar em algum bar por perto. Os solos de Miles Davis ecoam, a melancolia de Blue in Green é uma síntese de nosso anti-herói que trafega sozinho em seu carro.

Passa ao lado de um elegante hotel. Sempre apreciara sua arquitetura única, fruto da genialidade de seu criador. Era fã de arquitetura também. No topo do edifício, um luxuoso bar atrai executivo, casais, amantes, amigos e bêbados. Percebe que ainda está com seu terno, o bar o chama para afogar suas mágoas.

Nunca havia entrado no hotel, nem visto o famigerado bar. Não tinha muito dinheiro no bolso, mas o suficiente para o que queria.

Tudo elegância. Mesas modernas. Uma varanda com vista para a cidade. A imensidão da noite e a solidão do anonimato.

Caminha um pouco pelo local. A mochila é um empecilho, um lembrete de que fora daquele hotel havia outro mundo. Senta-se no bar. Um bêbado ao seu lado tenta acender um fósforo enquanto balbucia qualquer coisa indecifrável.

Sorve a bebida só. Recorda-se do dia desgraçado. Mas sente-se melhor por ter parado lá. Por um instante consegue pensar claramente sobre o todo.

Talvez fosse isso que faltasse em sua vida. Quebra a rotina. Se recusar a ser um “mais um”. Tinha encontrado o que queria. Queria negar tudo. Fugir.

As idéias corriam livres em sua cabeça agora. Urravam para serem libertadas, transformadas em algo físico, tácito. Eduardo era melancolia, mas também inspiração. Toma um último gole e paga a conta. Pega o carro, volta ao seu jazz. Os dedos anseiam por libertar as idéias, dar-lhes vida. Estava inspirado.

Só precisava da máquina de escrever para libertá-las. Só precisava da máquina de escrever para ser livre.

 

 

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