Junho de 2008 - Nº 10     ISSN 1982-7733
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Pedra entre pernas, corações entre Poetas

Isadora Soares Galvanese

21 anos, estudante de Biologia da UNESP/ Botucatu Botucatu – São Paulo

Foto: Isadora S. Gavanese

Foi no Rio. Eu estava na avenida quase seis horas. Onde mais estaria, senão sentado naquele banco próximo ao Forte? Uma brisa fresca corria, fugindo da chuva que cairia no dia seguinte. Eu assistia a movimentos intensos com meus olhos estáticos, nem sequer os automóveis paravam. Um pardal, pulando pelo calçadão, comportava-se tal qual o cego em meio ao tiroteio, escapando de chutes que vinham de todos os lados enquanto buscava alguma migalha entre as lajotas. Um dos golpes, porém, acertou em cheio sua esperança, o que o fez voar ligeiro em busca de alimento em outro canto.

Eram muitas pernas - longas, curtas, nenhuma vermelha -, quatro aproximaram-se de mim. Eram mãe e filho. Ela não me reconheceu (não é mesmo possível identificar um desconhecido), mas mesmo assim disse ao menino, de uns onze anos, que posasse para uma fotografia. Ele veio até mim e, sem pedir licença, escalou minhas costas e passou as finas pernas sobre meus ombros. Clic! Não reclamei. Mais uma, filho! Desceu, sentou-se ao meu lado e num gesto infantil invadiu meu nariz. Ria inocentemente. Clic! Ele era uma criança. Eu, objeto. Ela, mãe.

Eu não via o mar. Não vejo o mar. Daqui meus olhos sequer vêem a Lagoa. Se ao menos pudesse fechá-los... Seria mais fácil enxergar a memória. Mas não, apenas via outro grupo vindo em minha direção.

Três mulheres e um homem vinham arrastando os chinelos, fazendo música no encontro destes com os grãos de areia trazidos da praia. O rapaz ficou responsável pelos retratos e as damas, pelo despudor. Vieram uma a uma, rindo maliciosamente, tomando sempre posições muito íntimas. Ora no meu colo. Clic! Ora com os braços ao redor do meu pescoço e as pernas sobre as minhas. Clic! Ora pelas minhas costas, jogando o corpo contra o meu e deixando nossos rostos extremamente próximos. Clic! Eles também não sabiam quem eu era, apenas o que eu era. Aquela falsa intimidade me incomodava. Não reclamei, mas me senti ainda mais objeto e me perguntava por quê não havia de ser colocado ao lado da Pedra da Moreninha, ao menos o vento de Minas bate um pouco mais forte lá.

Estou de costas para o nascer - do - sol. Meus olhos são muito baixos para vê-lo se pôr, e mesmo se estivessem na altura do horizonte eu só veria concreto, pois os edifícios compraram os direitos que permitem assistir à despedida diária de nossa estrela.

De repente, notei três pernas movendo-se num ritmo característico, lento, como um coração cansado. Um par era simétrico e vinha coberto por calças, tentando esconder a fragilidade evidente; já o outro membro era um cabo forte de madeira de lei e expunha todo o seu vigor. Quando chegou mais perto pude ver as mãos, as quais exalavam pelos poros de estradas interligadas histórias fantásticas de uma vida inteira. Sentou-se ao meu lado, descansou a bengala e abriu o jornal que trazia embaixo do braço. Foi direto na seção de notícias cotidianas e, frente às dores que pungiam em cada linha, mostrou-se apático, pois o tempo transforma a indignação em lamentação e a sede de justiça em impotência. Fechou o jornal, observou o mar às nossas costas, olhou para a bengala, apoiou-se nela e foi embora, como o soldado que foge da batalha quando lhe falta munição. Somos, individualmente, muito pouco na vastidão do mundo.

Antes eu era parte de Itabira, agora sou pedaço de uma ferida que lá foi aberta. A exploração de minérios ameaça engolir minha terra, enquanto eu tento engolir a angústia. Porém, ela é muito grande, não passa pela garganta e seu gosto amargo permanece na minha boca seca. Mais pernas...

Eram duas e sustentavam uma mulher parada na minha frente. Eu sentia que ela me observava profundamente. Ajoelhou-se e, sorrindo, olhou com um carinho imensurável nos meus olhos, invadindo o mais íntimo de mim. Tocou as minhas mãos e tateou palavras muito lindas. Senti nela um respeito amigo e uma admiração aflita e deixei de ser, por alguns instantes, uma pedra de bronze esculpida no meio do caminho. Ali, eu era a companhia. Ela se sentou ao meu lado e assim permaneceu por alguns minutos, através dos quais trocamos desejos e temores. E o mundo se tornou pequeno na vastidão do meu coração. Num ímpeto, ela se ergueu, despediu-se e voltou a caminhar no sentido do Leme. Eu quis retorcer o pescoço para ver se ela olhava para trás, mas eu voltara a ser pedra. Via apenas uma luz distanciando-se e dando lugar àquelas luzes mortas que começavam a se acender por Copacabana. Eu ascendi na imensidão.

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