Narrativa
enviada por Daniel Andrade
32 anos, formado em Ciências Contábeis
Brasília – DF
Dia
desses, antes de um almoço entre amigos, resolvi
passar em um sebo para garimpar suas estantes em busca
de algum livro de valor.
Minha primeira visita foi à estante de biografias.
Gosto de biografias pois com elas aprendemos que somos
todos muito parecidos nas nossas alegrias e tristezas,
nas nossas inteligências e também na nossa
estupidez.
Entre uma leitura e outra, entre vidas como Clarice Lispector
e Tolkien, percebi que havia uma outra vida sendo lida,
observada de forma escancarada, a minha própria.
Um jovem e desconhecido rapaz, de seus vinte e dois anos
talvez, estava me observando de forma tão atenta
que quase lhe falei: não, muito obrigado, só
estou olhando... Certamente não se tratava de funcionário
pois sequer usava o uniforme da casa.
Fiquei bastante constrangido com aquela vigilância
e, como não poderia deixar de ser, imediatamente
tentei restaurar minha privacidade e chispei dali para
o subsolo da loja. Foi então que descobri no meu
implacável observador um não menos feroz
perseguidor.
Já no subsolo e me sentindo agora com duas sombras,
perguntei ao vendedor: amigo, onde fica a seção
de literatura? Para meu alívio ele me disse: lá
em cima. Ótimo, pensei. Agora eu quero ver esse
sujeito me seguir. Mas qual não foi a minha surpresa
quando subo a escada e, numa rápida olhadela o
vejo em meu encalço.
Incomodado ao extremo e já com uma interrogação
estampada no rosto, paro e pergunto olhando diretamente
para ele: você trabalha aqui? Sinceramente esperava
que ele desconversasse, ficasse sem graça e, diante
da minha abordagem, saísse pela tangente. Doce
ilusão. O que ouvi foi um surpreendente "não,
não trabalho. Você quer ser meu amigo?"
Eu não disse palavra. Não entendi lhufas
e, na esperança de que o silêncio fosse suficiente
para resolver a situação, me afastei. Persistente
que sou, tentei ainda encontrar na livraria um refúgio
onde pudesse realizar meu intento mas, na certeza de que
ali eu era caça e não caçador, resolvi
fugir.
Bati em retirada dizendo para mim mesmo: não olhe
para trás... não olhe para trás...
olhei. Ali estava ele. Desta vez não disse nada,
apenas gesticulei como quem diz: o que é? O que
você quer? Ele, bom entendedor de gestos que era,
respondeu: eu quero ser seu amigo... me dá seu
celular?
– Não. Quer meu celular? – Não.
Mais uma vez, fujo. Me viro e sigo até o carro
torcendo para que o aspirante a amigo desista de uma vez
por todas de mim. Já dentro do carro, são
e salvo, dou uma olhada e o vejo voltando à livraria,
resignado. Depois de algum tempo, de algumas risadas e
já refeito do episódio, pensei: é...
que bom seria se pudéssemos escolher e fazer amigos
como quem, em uma livraria, escolhe e compra livros.