Dezembro de 2006- Nº 04    ISSN 1982-7733
Aqui você é o repórter
Dicas para escrever
Sua vez, sua voz
Fale conosco
Tema da hora
Reportagens
Especial Política
Artigos e links sugeridos
Convidado da Hora
Seção livre
Palavra aberta
Esporte
Som na caixa
HQ e charge
Viagens
Intercâmbio
Poesia
Crônica
Cinema
Livros, CDs e DVDs
Especial
Poeta Homenageado
Exceção
Participe da enquete
Todas as edições do JJ
Escola
Como participar
Divulgação de eventos
 
Um ato de redenção

Carlos Messias
24 anos,tradutor e intérprete

São Paulo-capital

Dentre o conjunto de lembranças que configuram o que entendo por minha infância, uma se destaca, acredito eu, em função do forte apelo sentimental que representa. Não é uma única lembrança isolada, mas uma série particular de eventos análogos que marcaram uma época.

Desde que minha memória é capaz de recordar, até os meus nove anos de idade, eu e meu pai costumávamos visitar o meu avô aos domingos, quinzenalmente, em Votorantin (um subúrbio que fica fora de Sorocaba, ao redor da indústria homônima onde, tanto o meu avô quanto a minha avó, trabalharam por quase todas suas vidas).

Desde que era muito novo, eu já não morava com o meu pai e ele, desde a adolescência, vivia em São Paulo. Então estes encontros permitiam uma maior aproximação entre nós três. Sempre fazíamos as mesmas coisas: meu pai me pegava em casa, íamos de carro até Votorantin, pegávamos o velho para almoçar fora e voltávamos para a casa dele. Lá, assistíamos ao programa do Silvio Santos ou algum filme do Mazzaropi; meu pai preenchia os cheques referentes às despesas da quinzena seguinte e então era realizado o ato que melhor traduz o que aqui procuro transmitir.

Desde que a minha avó falecera, até o fim de seus dias, meu avô adotou um olhar mais triste, típico de quem se sente abandonado e desiludido pela vida. Isso se refletia em sua aparência, estava muitas vezes com: a barba por fazer, os ouvidos a limpar, os cabelos requerendo aparo e as unhas compridas. Dependendo do seu humor, meu pai empregava outros cuidados presentes nesta relação, mas um que ele nunca deixava passar era cortar as unhas do pé de meu avô. Talvez porque soubesse que aquele era o único que ele não conseguiria fazer sozinho, em função de sua avançada idade e de todas implicações que o tempo trás.

Então, quando o Sol caía, meu pai se levantava do sofá da sala de estar, caminhava até a escrivaninha da copa, aonde da gaveta retirava o Trim. Meu avô antecipadamente adotava uma postura rígida, com os seus membros superiores firmemente posicionados sobre os braços da poltrona e, com os olhos, expressava algo que ficava entre a acanhamento e a gratidão. A mim, ficava a incumbência de levantar as barras da calça do velho, num nível acima das suas canelas enrugadas e ressecadas. Descalçava-lhe os sapatos e retirava as suas meias que custavam a sair. Então o meu pai se ajoelhava em frente a ele e, com muito cuidado, cortava unhas do pé do pai.

É difícil definir exatamente o que me toca neste nobre ato de um homem perante o seu pai idoso. Só sinto que mesmo na ausência de palavras em que a situação se dava, muito era transmitido. De alguma forma, diante da distância espacial e circunstancial que os separava, meu pai estava declarando para aquele velho o quanto ele significava. Mostrando que muito se importava e que sentia profundamente pelas longas horas solitárias que seu pai passava. Deixava de lado qualquer rancor que poderia ter permanecido latente desde sua infância. Simplesmente retribuía os cuidados paternais que recebera ao longo da vida, mesmo que sem se lembrar deles. Estava deixando escancarado que não importava o quanto aquele velho se sentisse sozinho ou inválido, ele teria sempre alguém para cuidar dele. Pela parte do meu avô, eu diria que isso significava um acalento a que poderia recorrer em noites frias e silenciosas. Já quanto a mim, sou apenas grato por ter a oportunidade de presenciar demonstrações de afeto tão genuínas.

Depois de calçar o meu avô, eu me despedia dele com um beijo em sua face áspera e ia esperar por meu pai no carro, enquanto ele fazia os preparativos finais para o nosso regresso. Eu sentava no banco do motorista e me imaginava conduzindo aquela bela e possante Caravan preta de rodas gomadas. De lá, eu via o meu pai se despedir do dele com um aperto de mãos. Quando chegava ao carro ele me mandava para o banco de trás e regressávamos para a capital. Durante o percurso eu me esforçava para não cair no sono e dificilmente trocávamos alguma palavra.

 
Espaço dedicado a crônicas, ensaios e depoimentos.

Clique aqui
para enviar seu texto para esta seção. Aguarde nosso contato.
 
Conheça o portfólio