Carlos
Messias
24 anos,tradutor e intérprete
São Paulo-capital
Dentre
o conjunto de lembranças que configuram o que entendo
por minha infância, uma se destaca, acredito eu, em
função do forte apelo sentimental que representa.
Não é uma única lembrança isolada,
mas uma série particular de eventos análogos
que marcaram uma época.
Desde que minha memória é capaz de recordar,
até os meus nove anos de idade, eu e meu pai costumávamos
visitar o meu avô aos domingos, quinzenalmente, em
Votorantin (um subúrbio que fica fora de Sorocaba,
ao redor da indústria homônima onde, tanto
o meu avô quanto a minha avó, trabalharam por
quase todas suas vidas).
Desde que era muito novo, eu já não morava
com o meu pai e ele, desde a adolescência, vivia em
São Paulo. Então estes encontros permitiam
uma maior aproximação entre nós três.
Sempre fazíamos as mesmas coisas: meu pai me pegava
em casa, íamos de carro até Votorantin, pegávamos
o velho para almoçar fora e voltávamos para
a casa dele. Lá, assistíamos ao programa do
Silvio Santos ou algum filme do Mazzaropi; meu pai preenchia
os cheques referentes às despesas da quinzena seguinte
e então era realizado o ato que melhor traduz o que
aqui procuro transmitir.
Desde que a minha avó falecera, até o fim
de seus dias, meu avô adotou um olhar mais triste,
típico de quem se sente abandonado e desiludido pela
vida. Isso se refletia em sua aparência, estava muitas
vezes com: a barba por fazer, os ouvidos a limpar, os cabelos
requerendo aparo e as unhas compridas. Dependendo do seu
humor, meu pai empregava outros cuidados presentes nesta
relação, mas um que ele nunca deixava passar
era cortar as unhas do pé de meu avô. Talvez
porque soubesse que aquele era o único que ele não
conseguiria fazer sozinho, em função de sua
avançada idade e de todas implicações
que o tempo trás.
Então, quando o Sol caía, meu pai se levantava
do sofá da sala de estar, caminhava até a
escrivaninha da copa, aonde da gaveta retirava o Trim.
Meu avô antecipadamente adotava uma postura rígida,
com os seus membros superiores firmemente posicionados sobre
os braços da poltrona e, com os olhos, expressava
algo que ficava entre a acanhamento e a gratidão.
A mim, ficava a incumbência de levantar as barras
da calça do velho, num nível acima das suas
canelas enrugadas e ressecadas. Descalçava-lhe os
sapatos e retirava as suas meias que custavam a sair. Então
o meu pai se ajoelhava em frente a ele e, com muito cuidado,
cortava unhas do pé do pai.
É difícil definir exatamente o que me toca
neste nobre ato de um homem perante o seu pai idoso. Só
sinto que mesmo na ausência de palavras em que a situação
se dava, muito era transmitido. De alguma forma, diante
da distância espacial e circunstancial que os separava,
meu pai estava declarando para aquele velho o quanto ele
significava. Mostrando que muito se importava e que sentia
profundamente pelas longas horas solitárias que seu
pai passava. Deixava de lado qualquer rancor que poderia
ter permanecido latente desde sua infância. Simplesmente
retribuía os cuidados paternais que recebera ao longo
da vida, mesmo que sem se lembrar deles. Estava deixando
escancarado que não importava o quanto aquele velho
se sentisse sozinho ou inválido, ele teria sempre
alguém para cuidar dele. Pela parte do meu avô,
eu diria que isso significava um acalento a que poderia
recorrer em noites frias e silenciosas. Já quanto
a mim, sou apenas grato por ter a oportunidade de presenciar
demonstrações de afeto tão genuínas.
Depois de calçar o meu avô, eu me despedia
dele com um beijo em sua face áspera e ia esperar
por meu pai no carro, enquanto ele fazia os preparativos
finais para o nosso regresso. Eu sentava no banco do motorista
e me imaginava conduzindo aquela bela e possante Caravan
preta de rodas gomadas. De lá, eu via o meu pai se
despedir do dele com um aperto de mãos. Quando chegava
ao carro ele me mandava para o banco de trás e regressávamos
para a capital. Durante o percurso eu me esforçava
para não cair no sono e dificilmente trocávamos
alguma palavra.
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