Ensaio enviado
por Carlos Messias
24 anos, formado em Psicologia, é tradutor e
intérprete
São Paulo-capital
Nos
créditos iniciais parece mais um típico filme
do cineasta: aquele fundo preto com os nomes apresentados
naquela tipografia que se tornou tão característica.
Mas percebemos uma diferença. Ao invés do
típico jazz soando no fundo, dessa vez temos ópera.
A primeira cena também é uma surpresa. Primeiro
porque mostra uma quadra de tênis, enquanto esportes
nunca foram tema em seus filmes. Segundo, porque tem um
narrador. Terceiro, porque a tomada é feita em câmera
lenta.
Nesta cena aparece uma bola de tênis que pega na rede
de raspão e gera aquela expectativa de se ela chegará
ao outro lado ou não. É quando o narrador
apresenta a idéia central do filme: bem ou mal, a
nossa vida é definida pela sorte, pelo acaso, sendo
isso que determinará se chegaremos do outro lado,
ao nos depararmos com obstáculos, ou não.
Logo se percebe o equívoco cometido pela distribuidora
do filme no Brasil, ao lançá-lo com o título
Ponto Final. Do original, Match Point (ponto
decisivo) para ponto final há uma diferença
sutil na tradução, se colocada em relação
à história do filme ou ao esporte tênis.
Ponto Final, por mais que seja um nome forte, é um
recurso de pontuação e como tal causa uma
impressão de acabamento, fechamento. Enquanto ponto
decisivo diz respeito a um momento efêmero que foge
ao controle daqueles envolvidos e cede espaço ao
acaso. O que deixa em aberto.
O
enredo é o seguinte: Chris (Jonathan Rhys Meyers)
é um alpinista social que ao trabalhar como instrutor
de tênis em um clube de elite enxerga uma oportunidade
de se dar bem na vida. Logo se aproxima de Tom Hewett, um
bon vivant de família nobre. É então
que Chris se prepara para infiltrar na família: desenvolve
um gosto por ópera (que é o que inicialmente
os aproxima), estuda Dostoiévisky para poder fazer
comentários enriquecedores e sempre que pode provém
à família o ópio de gente rica: elogios,
reconhecimento pelo sucesso, massagens no Ego.
Chris não demora em se aproximar da irmã de
Tom, Chloe, que logo se apaixona por ele. Então ele
a manipula conseguindo ser aceito na família, vendendo
uma versão barata de jovem humilde e esforçado
que consegue bater as possibilidades e ascender socialmente
por mérito próprio.
Ele se torna um deles, freqüenta suas festas, participa
de suas sessões de tiro ao alvo, interage em suas
discussões. Quando se vê, Chris está
casado com Chloe, trabalhando em uma das empresas do patriarca
e vivendo em um luxuoso loft no centro de Londres.
Enfim, Chris parece estar com a vida feita, não fosse
por um simples detalhe que parecia ter superado: Nola Rice
(interpretada por Scarlett Johansson).
Nesse filme, a sempre estonteante Scarlett vive seu personagem
mais sensual e provocativo, algo também raro nos
filmes de Allen.
Chris conheceu Nola logo que começou a conviver com
a família Hewett, quando ela era namorada de Tom.
Flertaram um pouco, fizeram amor em um campo de centeio
em baixo de chuva, mas logo Nola colocou o freio na relação,
pois afinal eles seriam cunhados. E quando Tom terminou
com Nola ela sumiu sem deixar rastros.
Mas quando retorna, ela e Chris vivem uma tórrida
paixão que é retratada por Allen de uma maneira
pura, sensível e, mais do que tudo, implacável.
Mas quando a moça engravida tudo foge de controle.
Ela exige que ele largue sua esposa, caso contrário
ela mesma irá contar a verdade. Mas Chris, não
querendo abrir mão do estilo de vida que o matrimônio
lhe proporcionou, hesita em terminar o seu casamento e resolve
matar Nola.
Esse
tema já fora visitado por Woody em Crimes e Pecados.
Mas agora, em toda sua maturidade como cineasta e, acredito
eu, como pensador, ele o aborda de uma maneira superlativa.
Tem a filosofia do acaso como pano de fundo e nos mostra
como um único instante regido pela sorte pode definir
as vicissitudes de nossas ações.
Ponto Final é uma obra prima. Narrada com
agilidade, nem uma cena perde o sentido no contexto geral
da história. As tomadas são belamente orquestradas,
chegam a insinuar vertigem, e alguns cortes são propositalmente
bruscos, nos levando diretamente à contradição
e ambivalência de cada personagem, ao nos jogar à
cena seguinte.
E Londres, cidade nunca antes visitada pelo diretor, que
quase sempre filma em Nova Iorque ou, mais especificamente,
em Manhattan, é mostrada em tomadas de tirar o fôlego.
Um suspense noir. Um drama amoroso. Uma comédia de
humor negro. Um thriller cheio de reviravoltas. Uma tragédia
tipicamente grega. Uma intensa história movida pelos
mais básicos sentimentos humanos como amor e ódio,
inveja e vingança.
Ponto Final não apenas é tudo isso,
como se torna uma ópera contemporânea, uma
teia de personagens e situações que só
se tornam dramáticas pelo seu encadeamento orquestral,
pelo fluxo da narrativa, pelas reviravoltas da trama, pela
forma como o expectador se envolve na história.
Nos tornamos marionetes conduzidas por um mosaico de aspectos
genuinamente humanos. Nos contradizemos, somos provocados.
Recebemos um convite a nos identificar com o “vilão”,
que é um sujeito perfeitamente passível de
identificação. Torcemos por ele, compartilhamos
sua amoralidade. Somos constantemente estimulados e provocados.
E quando vemos estamos do outro lado, transitando pelos
aspectos mais obscuros da psique humana.
Aqui, Allen abre mão da neurose e do Complexo de
Édipo, se permitindo flertar com a luxúria.
Seu foco não interpõe julgamentos. E o resultado
não é nada menos que tentador.
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