Março de 2008 - Nº 09     ISSN 1982-7733
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Clarice entrevista Millôr Fernandes

Reprodução da entrevista que Clarice Lispector fez com Millôr Fernandes. Do livro Entrevistas, Ed. Rocco

Não vou apresentar Millôr: quem o conhece sabe que eu teria que escrever várias páginas para apresentar uma figura tão variada em atividades e talentos. Somos amigos de longa data. Nossa entrevista decorreu fácil, sem incidentes de incompreensão. Havia confiança mútua.

Como vai você, Millôr, profundamente falando?

Vou profundamente, como sempre. Não sei viver de outro modo. Pago o preço.

Às vezes o preço é alto demais, Millôr. Como é que lhe veio a idéia de arquitetar O Homem do Princípio ao Fim, que é um grande e comovente espetáculo? Eu, por exemplo, o veria de novo.

Foi a pedido dessa extraordinária amiga que é Fernanda Montenegro. Como eu já tinha escrito um espetáculo basicamente político, Liberdade, liberdade (com Flávio Rangel), resolvi não me repetir e me fixei num ponto de vista humanístico que é a qualidade essencial daquele meu trabalho.

Que é que você me diz de sua experiência como ator?

Sensacional e inútil. Sensacional por causa da segurança que se ganha ao perceber uma possibilidade total de comunicação, e isso é emocionante. Inútil porque não tenho nada a fazer com o resultado dessa experiência. A comunicação que busco é toda outra, íntima e definitiva.

Millôr, você já sentiu com toda a humanidade a centelha de uma coisa que uns chamam de gênio, mas não é gênio, é bastante comum: é uma visão instantânea das coisas do mundo como na realidade são?

Se é isso que chamam de gênio, então está para mim. Só vejo isso. Tenho mesmo a impressão de que nada do que vejo é comum. A mim me faltam todas as noções das coisas do mundo tal como ele é. Mas essa espécie de lucidez de que você fala, a lucidez do absurdo, essa eu tenho no meio da maior paixão. Creio mesmo que um dia vou estourar de lucidez, isto é, ficar louco.

Conte-me algo de sua infância.

Dura! Dura! Linda! Linda! O Méier, naquela época, era praticamente rural. Eu aprendi a nadar em um pântano, cheio de rãs. Aprendi a amar num quintal fazendo bonecos de tabatinga junto com as meninas. Essa infância durou até os dez anos. Aí, um dia, na morte de minha mãe, chorando horas embaixo de uma cama, eu consegui a paz da descrença. Aos dez anos, pois é.

De que modo lhe vem a inspiração, Millôr? Você sente que vem de seu inconsciente?

Creio que exatamente de todos os modos.  Mas não penso que seja precisamente inconsciente. Mesmo quando parece inconsciente acho que o núcleo da inspiração é uma vivência qualquer (imagem, som, dor, angústia) antes arquivada e de repente, por qualquer motivo (também exterior), ressuscitada. Mas meu caso é muito especial: não sou um escritor, sou um profissional de escrever.

Falamos sobre várias personalidades; em seguida perguntei-lhe:

Quais os homens que você mais admira e por quê?

Vou limitar a pergunta, no tempo e no espaço. E prefiro assim ter a coragem de escolher um homem de meu tempo e de meu espaço. Vinicius de Morais. Pelo muito que somos iguais, pelo imenso que nos separa, eu elejo o poetinha como o dono de uma visão de vida essencial.

De conversa puxa conversa, passamos, não sei como, a falar da morte.

Como é que você encara o problema da morte? A morte é um problema para você?

Acho o problema da morte fascinante (talvez porque eu não a sinta perto de mim). Gostaria mesmo de morrer já para, sem trocadilho, viver essa experiência. Desde que me fosse dado, depois, voltar apenas para contar como foi.

Voltamos a falar da vida e sobre o que mais nos importava.

O que mais importa na vida?

A relação humana. O amor. A paixão, nisso incluída. Também, ou sobretudo, as paixões condenadas, de homem com homem e mulher com mulher. Como sou aquilo que a sociedade chama de saudável e normal, as paixões anormais merecem o meu maior respeito.

Se você não fosse escritor, o que seria?

Um atleta. Eu sou, fundamentalmente, um atleta frustrado. Aliás, essa é a única frustração que me ficou de uma pré-juventude (de dez a 17 anos) excessivamente dura.

Em matéria de escrever, você sente, na sua trajetória, um progresso?

Acho que sim. Sobretudo se comparar o início com a fase atual, o que não é vantagem porque eu comecei a escrever em jornal aos 13 anos de idade. Só um debilóide não teria progredido. De qualquer forma, continuo tentando me renovar sempre, num gosto por buscar formas e visões novas, que ainda não perdi.

E, em matéria de vida, de maneira de viver, você sente um progresso que vem da experiência?

Acho que sim. Mas será que os outros acham? Nada me surpreende mais, por exemplo, do que ouvir dizer que sou agressivo. Porque eu me sinto a flor da ternura humana. Mas será que sou? De qualquer forma, há dentro da minha mais profunda consciência a certeza de que o gênio do ser humano está na bondade. Isso eu procuro.

Concordei com ele sobre a bondade.

Também eu a procuro com humildade e ao mesmo tempo com veemência. Millôr, você ainda faz hai-kai? (Hai-kai é um estilo poético popular japonês, aparecido há mais ou menos quatro séculos.)

Posso fazer. Vou fazer dois:

Você pode crer

O pior cego

É o que quer ver.

Esta é a verdade

Eu sou um homem

De minha idade.

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