Trechos do livro A Descoberta do Mundo
A SURPRESA (19 de agosto de 1967)
- Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência.
- Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.
UM PINTINHO (10 de fevereiro de 1968)
- Um de meus filhos comprou um pintinho amarelo. Que pena que dá. Sente-se nele a falta da mãe. O susto de ter nascido do nada. E nenhum pensamento, apenas sensações. Será que vai vingar? Este parece que sim. E no entanto eu queria que não: como ter num apartamento um galo ou uma galinha? Matar e comer? O que se cria não se mata. É só esperar e dar de comer, e dar-lhe amor vindo do calor das mãos.
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA (10 de fevereiro de 1968)
- Eu poderia dizer isso pessoalmente mas tive medo de me emocionar. Você sabe que não me seria difícil convidar o que se chama de personalidades para a minha casa. Mas não foi por você ser uma personalidade que chamei. Convidei porque, além de ser altamente gostável, você tem a coisa mais preciosa que existe: a candura. Meus filhos têm. E eu, apesar de não parecer, tenho candura dentro de mim. Escondo-a porque ela foi ferida. Peço a Deus que a sua candura nunca seja ferida e que se mantenha sempre.
SAUDADE (27 de maio de 1968)
- Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
QUANDO CHEGAR A HORA DE PARTIR (9 de maio de 1970)
- Você compreende, não é, mamãe, que eu não posso gostar de você desse mesmo modo a vida inteira.
EXERCÍCIO (15 de janeiro de 1972)
- É curiosa essa experiência de escrever mais leve e para muitos, eu que escrevia “minhas coisas” para poucos. Está sendo agradável a sensação. Aliás, tenho me convivido muito ultimamente e descobri com surpresa que sou suportável, às vezes até agradável de ser.
Bem. Nem sempre.
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