por Thiago S. Bechara
Clarice Lispector. Foto: Divulgação
Abri o livro já na cama como quem só vai olhar as páginas pelo prazer de abrir um livro. Mas quando eu vi, já estava agarrado a uma velhinha desamparada. Fui até seu fim. Atônito. Foi o mesmo que uma felicidade clandestina, tê-lo feita às altas da madrugada, quando é dever de todos descansar.
Mas eu sei que abri Clarice no intuito mesmo de lê-la. Como o sono me impedia as forças, fingi não querer, pra me trair logo depois. E foi assim que me engoliu mais um conto encantado pra reverberar minha alma.
E outro. Mais outro, como se, a cada história, algo de novo se edificasse sobre minha vida. Algo de que eu não poderia prescindir por nem um minuto sequer. Exatamente como a paixão de um primeiro beijo. Urgente e revelador. Capaz de saciar a sede num jorro de retalhos afetivos.
Era algo como saber-se vivo diante de um livro vivo. Dois organismos se defrontando. E mais que isso, se decifrando um ao outro. Devorando-se da mesma maneira que fizera a menina numa de suas histórias de tanto amor, ao comer a galinha de estimação certa de que, assim, teria-a plenamente incorporado. Tão simples quanto fazer Clarice ao molho pardo.
Por tanto amor, teria eu fugido com o livro para uma paragem distante, não estivesse já dentro de mim, que foi o lugar mais longínquo que pude encontrar. Lá, nesse interior, foi que guardei suas páginas, como uma Flor de Liz. Na prateleira do meu peito, quando voltei ao primeiro conto e me espantei ao deparar-me com a descrição perfeita do momento que eu vivia.
Tomo aqui a liberdade de reproduzi-lo. Afinal, foi também de minha autoria, naquele instante.
Não era mais um menino com um livro: era um homem com sua amante!
Fechei-o às duas horas sem saber se minha tontura vinha do sono ou da morte que se anunciara ao fim da história da velhinha. Mas dormi.
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