Frei
Betto
Publicado
na revista Caros Amigos, julho de 2006
www.adital.com.br
Será
que numa sociedade tão quantificada pelo mercado
existe espaço para valores qualitativos da ética?
Diante da impunidade de políticos comprovadamente
anti-éticos, há esperança de que bens
infinitos, como acentuava o professor Milton Santos, tenham
prevalência sobre bens finitos? Ou seria a ética
uma mera questão de estética, emoldurando
a mulher de César, ainda que ela não seja
honesta?
Ética
deriva do grego ethos, usos e costumes adotados
numa sociedade para se evitar a barbárie de a vontade
de um violar os direitos de todos. Valor universal, deve
estar enraizado no coração humano. Difere
do pecado. Este deriva de algo que vem de fora da pessoa
- a vontade de Deus, os mandamentos, a culpa originada da
transgressão da lei divina. A ética vem de
dentro, iluminada pela razão e fomentada pela prática
das virtudes.
A
mitologia, religião dos gregos repleta de exemplos
nada edificantes, obrigou-os a buscar na razão os
princípios normativos de nossa boa convivência
social. A promiscuidade reinante no Olimpo podia ser objeto
de crença, mas não convinha traduzir-se em
atitudes; assim, a razão conquistou autonomia frente
à religião, como nos ensinam as obras de Platão
e Aristóteles e, por tabela, a sabedoria de Sócrates.
Se
a nossa moral não decorre dos deuses, então
somos nós, seres racionais, que devemos erigi-la.
Em Antígona, peça de Sófocles,
em nome de razões de Estado Creonte proíbe
Antígona de sepultar seu irmão Polinice. Ela
se recusa a obedecer "leis não escritas, imutáveis,
que não datam de hoje nem de ontem, que ninguém
sabe quando apareceram". É a afirmação
da consciência sobre a lei, da cidadania sobre o Estado,
do direito natural sobre o divino.
Mas
será que temos todos consciência ética?
E essa consciência individual converge para os interesses
coletivos? Sócrates defendia que a ética exige
normas constantes e imutáveis. Não pode ficar
na dependência da diversidade de opiniões.
Em República, Platão lembra que para Trasímaco
a ética de uma sociedade reflete os interesses de
quem ali detém o poder. Conceito que será
retomado por Marx e aplicado à ideologia. O que é
o poder? É o direito concedido a um indivíduo
ou conquistado por um partido ou classe social de impor
a sua vontade à vontade dos demais.
Na
versão de Paulo Freire, numa sociedade desigual a
cabeça do oprimido tende a hospedar a cabeça
do opressor. Isso significa que a classe política,
por deter o poder, normatiza (ou não) os princípios
éticos que regem uma sociedade. Ou relativiza-os
ao adotar o "jeitinho", o nepotismo, o corporativismo.
Ou nega-os pela prática da corrupção,
da malversação, da locupletação
com dinheiro público.
Aristóteles
rejeita a Teoria do Bem e põe a bola no chão:
o que as pessoas mais desejam? A felicidade, responde acertadamente;
inclusive quando praticam o mal, lembra Tomás de
Aquino. Santo Agostinho, influenciado por Platão,
dirá que o ser humano vive na permanente tensão
entre a lei e o amor, a cidade dos homens e a cidade de
Deus. A primeira exige coerção e repressão
a fim de combater o mal, e essa função só
pode ser exercida por quem governa em prol da comunidade.
Na cidade de Deus predominam o amor, o perdão, a
persuasão.
Essa dialética introduz-se definitivamente na política
e aparece, na Idade Média, sob a teoria das "duas
espadas"; em Lutero, a luta entre os "dois reinos";
na teologia atual, a não-violência e a violência
revolucionária; na filosofia política, a distinção
entre ética na política e ética da
política.
Santo
Tomás de Aquino sublinha a irredutível precedência
da consciência individual, buscando entretanto o equilíbrio
que evite os riscos de relativismo e juridicismo. O primeiro
instaura a anarquia quando cada um, a partir da própria
consciência, considera-se juiz de si mesmo; o segundo
nega a liberdade humana ao identificar o legal com o justo,
e erigir a lei em princípio supostamente imutável.
Os
iluministas, como Kant e Hume, fundam a ética na
natureza humana; imprimem-lhe autonomia frente à
ética cristã, centrada na fé. "Mesmo
o Santo do Evangelho - diz Kant - deve ser comparado com
o nosso ideal de perfeição moral antes de
ser reconhecido como tal" (Fundamentos da metafísica
dos costumes). Há em nós um senso inato do
dever e não deixo de fazer algo por ser pecado, e
sim por ser injusto. E nossa ética individual deve
se complementar pela ética social, já que
não somos um rebanho de indivíduos, mas uma
sociedade que exige, à sua boa convivência,
normas e leis e, sobretudo, a cooperação de
uns com os outros.
Ética
universal
A
filosofia moderna fará uma distinção
aparentemente avançada e que, de fato, abre novo
campo de tensão ao frisar que, respeitada a lei,
cada um é dono de seu nariz. A privacidade como reino
da liberdade total. O problema desse enunciado é
que desloca a ética da responsabilidade social (cada
um deve preocupar-se com todos) para os direitos individuais
(cada um que cuide de si).
Essa
distinção ameaça a ética de
ceder ao subjetivismo egocêntrico. Tenho direitos,
prescritos numa Declaração Universal, mas
e os deveres? Que obrigações tenho para com
a sociedade em que vivo? O que tenho a ver com o faminto,
o oprimido e o excluído? Daí a importância
do conceito de cidadania. As pessoas são diferentes
e, numa sociedade desigual, tratadas segundo sua importância
na escala social. Já o cidadão, pobre ou rico,
é um ser dotado de direitos invioláveis, e
está sujeito à lei como todos os demais. O
caso Francelino, com a derrubada do ministro Palocci, acusado
de violar o sigilo bancário do caseiro, é
um bom exemplo de como a cidadania inibe o arbítrio.
Uma
ética que se pretenda universal não pode restringir-se
a uma ótica negativa que proíba a violação
de direitos fundamentais. Há que coroá-la
com seu aspecto positivo, acentuando virtudes, valores,
costumes e responsabilidades sociais, sem olvidar que a
felicidade - o bem supremo - exige condições
subjetivas e objetivas, articula o pessoal ao social, e
inclui a preservação do meio ambiente.
Na
atual conjuntura, parece não haver justiça
no reino da política para quem viola a ética,
nem reconhecimento para quem a pratica. Quando muito, fica-se
na ética do mínimo: faço o que a lei
não proíbe. Quem detém uma função
política serve, queira ou não, de parâmetro
para a sociedade. Não é suficiente que respeite
as leis. Deve agir com justiça e generosidade, e
suas atitudes pautarem-se pelo rigor ético. Caso
contrário, será contado entre os hipócritas,
aqueles que, no teatro grego, falavam uma coisa enquanto
os autores faziam outra. É o que hoje se chama estética
do marketing eleitoral; ornamenta-se o embuste para que
ambições pessoais sejam coroadas pela aura
do dever cívico em prol do bem comum.
Não
basta, entretanto, supor que a ética depende exclusivamente
das virtudes pessoais. Como dizia Ortega y Gasset, "eu
sou eu e minhas circunstâncias." Há que
fundar a ética no modo de organizar a sociedade.
Se as instituições são verdadeiramente
democráticas, transparentes; se há liberdade
de imprensa; se os movimentos sociais dispõem de
força e mecanismos para pressionar o poder público;
então as atitudes anti-éticas tornam-se mais
difíceis. Por isso os políticos sem caráter
não se empenham na reforma política, na democracia
participativa, no acesso da ação popular ao
poder público.
Ao
votar, o eleitor deve avaliar a conduta ética do
candidato, sua vida pregressa, os princípios que
o regem e os objetivos a que visa. É o caminho para
aperfeiçoarmos as instituições e a
democracia. Contudo, a ética da política não
pode depender de virtudes pessoais dos políticos.
Como adverte o Gênesis, todo ser humano tem prazo
de validade e defeito de fabricação, o que
o autor bíblico chama de ‘pecado original’.
Mais do que os indivíduos, são as instituições
sociais que devem estar impregnadas de ética. Assim,
ainda que o indivíduo queira corromper ou deixar-se
corromper, fica na vontade e na tentação,
impedido pela argamassa jurídica que sustenta as
instituições vedadas às brechas que
favorecem a impunidade.
Parecer
ético é uma questão de estética,
típica do oportunismo. Ser ético é
uma questão de caráter.
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